Chomsky pede a Chávez clemência para juíza

Ícone da esquerda americana, o linguista Noam Chomsky disse que está “empolgado” com as reformas promovidas por governos de esquerda na América do Sul, mas que há problemas pendentes. Entre eles, a falta de independência da Justiça na Venezuela, apontada há tempos por organizações de direitos humanos.

A reportagem e a entrevista é de Cláudia Antunes e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 03-07-2011.

Chomsky, 82, publica neste domingo num jornal de Caracas uma carta aberta em apoio à libertação da juíza María Lourdes Afiuni, que foi detida em 2009 depois de conceder liberdade condicional a um banqueiro acusado de fraude cambial.

A juíza diz que o processo contra ela é político; para o professor americano, as acusações são “bastante frágeis”. Ele vinha tentando sem sucesso fazer uma mediação silenciosa por Afiuni há sete meses, a pedido da Iniciativa Latino-Americana do Centro Carr de Políticas de Direitos Humanos, da Universidade Harvard. Agora, pede publicamente que o presidente venezuelano Hugo Chávez conceda à juíza um “perdão oficial”.

“Eu espero que haja clemência no caso da juíza, que as questões que estão surgindo sobre o Judiciário sejam resolvidas e que os programas de redução da pobreza, as Missões de saúde, sejam bem-sucedidos e vibrantes”, disse.

Na entrevista, ele aproveita para criticar o governo americano pela prisão de Bradley Manning, o soldado suspeito de vazar documentos ao WikiLeaks. Também rejeita a comparação feita por analistas entre Chávez e Luiz Inácio Lula da Silva, em que o ex-presidente brasileiro é citado como modelo positivo.

“O fato de que os EUA e sua propaganda sejam compelidos a apresentar Lula como um padrão, em vez de criticá-lo por não ser suficientemente subserviente, por exemplo no caso do Irã, é uma indicação das mudanças na América Latina nos últimos dez anos.”

Eis a entrevista.

Como o sr. se convenceu da inocência da juíza Afiuni?

A carta não diz nada sobre sua culpa ou inocência, não toca nessa questão. Pessoalmente, eu considero as acusações bastante frágeis, mas nem eu nem o Centro Carr estamos em posição de avaliar a prova, que de fato não foi apresentada. A carta é um pedido de clemência em bases humanitárias, considerando o desafortunado retrospecto dos últimos três anos. Deixa implícito que o processo judicial não foi adequado. Diz que ela já passou por violência e humilhação suficiente e deve receber clemência.

Grupos de direitos humanos e a OEA (Organização dos Estados Americanos) acusam o governo venezuelano pela falta de independência do Judiciário. Qual a sua posição sobre isso?

Acho que as acusações feitas pela Anistia Internacional e a OEA merecem ser levadas muito a sério. Devo acrescentar que as críticas feitas pelos EUA partem de bases frágeis. O processo judicial nos EUA é grotesco. Agora mesmo, por exemplo, Bradley Manning, contra quem nenhum acusação formal foi feita, está preso há quase ano, boa parte dele em confinamento solitário, que equivale à tortura. Não há nenhuma acusação, e esse não é o único caso.

O fato de o presidente Chávez estar agora doente, em Havana, pode ter algum impacto em seu pedido de clemência?

Não vejo nenhuma relação com o pedido de clemência. Mas estou atento à saúde do presidente e espero sua total e pronta recuperação.

Quando o sr. esteve na Venezuela, em 2009, que impressões teve das conversas com Chávez?

Eu estive por algumas horas, muito brevemente. Dei palestras, entrevistas, fui a um encontro numa das favelas e estive com o presidente Chávez. Foi uma conversa interessante e informativa, basicamente sobre sua trajetória, suas políticas, a relação com os Estados Unidos.

Sendo Chávez um admirador declarado do sr., que peso julga que a publicação da carta terá?

Devo dizer que estou envolvido com coisas como essas o tempo todo, em vários países. Nunca sabemos como vão funcionar, mas tentamos.

Chávez respondeu formalmente a seus pedidos anteriores pela liberdade da juíza?

Não houve resposta, mas quase nunca há respostas de Executivos, a não ser em formas vazias de sentido, se tanto.

O sr. sempre foi um defensor do governo de Chávez e de outros governos de esquerda na América Latina. Fatos como esse o desapontam?

Dizer que eu sou um defensor [dos governos] é um pouco enganoso. Sou um defensor da independência da América Latina e de que ela enfrente seus tremendos problemas internos, que têm sido um escândalo internacional por muito tempo.

Isso começou a acontecer na última década. Pela primeira em 500 anos houve movimentos na América Latina na direção da integração de sociedades que estiveram separadas por muito tempo. E houve esforços, em alguns casos bastante significativos, de resolver os graves problemas de desigualdade, pobreza, alta concentração de renda. Acho isso muito bom, e nesse sentido sou um defensor. Acho que os eventos na América do Sul na última década são provavelmente os mais empolgantes no mundo. Agora mesmo a chamada Primavera Árabe pode ser o início de algo similar no Oriente Médio.

Mas há problemas em todo lugar, incluindo no Brasil, e acho que esses naturalmente preocupam, assim como problemas nos EUA me preocupam seriamente.

Que problemas dizem respeito ao funcionamento da democracia?

Ao Judiciário, uma vez que estamos falando disso. Quando há julgamentos militares, e uma prisão prolongada sob condições que equivalem à tortura sem acusações, ou prisões de alta segurança como há nos EUA, que são basicamente câmeras de tortura, isso é um problema grave.

Na Venezuela, o caso fere suas expectativas?

Não tenho nenhuma expectativa particular. Eu acompanho o que acontece com interesse. Acho que há problemas e progresso. Eu espero que haja clemência no caso da juíza, que as questões que estão surgindo sobre o Judiciário sejam resolvidas e que os programas de redução da pobreza, as Missões de saúde, sejam bem-sucedidos e vibrantes.

Muitos analistas nos EUA fazem uma diferenciação entre Chávez e o ex-presidente Lula, como líderes de modelos opostos. O sr. vê essa clivagem?

Você sabe melhor do que eu que Lula sempre apoiou Chávez. Há diferenças, claro. Mas o esforço nos EUA de traçar uma distinção é parte da campanha de propaganda contra a Venezuela, que é intensa.

A atitude em relação a Lula é bem interessante. O governo e as políticas de Lula não são tão diferentes das de João Goulart no início dos anos 1960. Naquela época o governo de John Kennedy organizou um golpe militar, que ocorreu logo depois de seu assassinato, para instalar o terrível Estado de segurança nacional que bloqueou passos moderados na direção da democracia e da reforma social.

Nos anos recentes, as coisas mudaram. O fato de que os EUA e sua propaganda sejam compelidos a apresentar Lula como um padrão, em vez de criticá-lo por não ser suficientemente subserviente, por exemplo no caso do Irã, é uma indicação das mudanças na América Latina pelos últimos dez anos. No caso da Venezuela, como você sabe, houve uma tentativa dos EUA de realizar um golpe militar [contra Chávez, em 2002].

Lula é muito elogiado por não ter tentado continuar no poder depois dos dois mandatos constitucionais, ao contrário de Chávez.

É uma crítica interessante também. Os EUA eram uma ditadura fascista sob Franklin Delano Roosevelt? Ele teve quatro mandatos. Pode-se argumentar se é certo ou errado, mas dificilmente é um argumento forte. No sistema parlamentar, o primeiro-ministro pode ser reeleito indefinidamente.

O governo Obama mudou a política para a América Latina?

Não de maneira significativa. A era de golpes militares apoiados pelos EUA declinou, mas não acabou. Na última década houve três. O primeiro na Venezuela, que foi rechaçado; o segundo no Haiti, quando os EUA e a França, os dois torturadores tradicionais do Haiti, sequestraram o presidente [Jean-Bertrand Aristide] e o mandaram para a África, e o terceiro em Honduras, já sob Obama.

No caso de Honduras, houve uma divisão entre os EUA e o Brasil, na verdade entre os EUA e praticamente todo o mundo. Os EUA foram quase o único país que na prática reconheceu o golpe e fez vista grossa às atrocidades que aconteceram desde então. Isso é Obama.

Na sua avaliação, essa maior independência dos EUA é uma tendência duradoura na América do Sul ou muito depende da ascensão chinesa, que demanda os produtos da região?

Olhando de fora, você esperaria que a América Latina progredisse muito mais fácil do que o Leste da Ásia. Tem muitos recursos, não tem inimigos externos, muitas vantagens. Mas ela patinou. E é possível ver as razões se você comparar os modelos socioeconômicos. No Leste da Ásia, houve controles de capitais. Na Coreia do Sul, durante o período de desenvolvimento rápido, você poderia ser condenado à morte por exportar capital; o investimento estrangeiro era aceito, mas era controlado para a transferência de tecnologia; havia importações, mas principalmente de bens de capital.

Na América Latina foi totalmente diferente. Importavam-se bens de luxos, não se impuseram controles a remessas de capital, até recentemente havia muito pouca preocupação com o bem-estar da população. E quando havia governos que tentaram ir nessa direção, eles eram derrubados por golpes militares, de fato pelos EUA.

Há uma grande mudança nos últimos dez anos. Os programas contra a pobreza no Brasil foram, acho, bastante bem sucedidos. Na Venezuela houve uma aguda redução da pobreza, na Bolívia o progresso democrático foi notável, a população indígena, que é a maioria e a mais reprimida do hemisfério, conseguiu entrar na arena política para pressionar por suas reivindicações, elegeu alguém de seus quadros. A Bolívia tem uma história de reforma e ativismo, que sempre foi esmagada no passado. Todos esses são passos importantes.

No que diz respeito ao crescimento, o exemplo mais espetacular foi o da Argentina, que rejeitou completamente as exigências do FMI, do Tesouro americano e dos investidores estrangeiros, reestruturou sua dívida, e, contra as previsões de quase todos os economistas, cresceu muito desde então.

E quais são as perspectivas para a economia americana, com a persistência da alta taxa de desemprego?

A situação nos EUA é bastante ruim. Desde 1980, a renda da maioria da população estagnou ou caiu, houve uma enorme concentração de riqueza, está começando a parecer o pior da América Latina. Uma fração de 1% da população, quer dizer, gerentes de fundos de hedge, executivos de corporação, fica com grande parte da renda. Houve um processo de financeirização da economia, a exportação da produção, crises financeiras repetidas.

Não havia crises nos anos 50 e 60, quando vigoravam as regulamentações do New Deal. Tudo isso convergiu para um círculo vicioso de latino-americanização, alta concentração de renda, empobrecimento da população, desemprego. E está ficando pior, a infraestrutura está entrando em colapso, há uma preocupação maníaca com a redução da dívida, que é um problema menor, em detrimento do enorme problema do desemprego. É uma situação perigosa.

Como o sr. acredita que a intervenção da Otan na Líbia vai terminar?

Em primeiro lugar, é importante notar que há apenas três potências que estão envolvidas seriamente, as três potências imperiais tradicionais, Reino Unido, França e EUA. Os outros têm um envolvimento marginal ou ficaram fora, incluindo o Brasil.

Na última cúpula dos Brics, na China, a declaração pediu um acordo político na Líbia, e essa é a visão de quase todo o mundo. A Turquia não está apoiando, os países árabes não estão fazendo nada, Catar mandou alguns aviões, a Alemanha não está apoiando. A Otan aderiu relutantemente. É difícil saber o que vai acontecer, mas pode haver uma partição do país.

Fonte: IHU Online

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