Quadrinhos ao sul do mundo – Breve notícia da historieta argentina (continuação)

Fabio Bortolazzo Pinto (Doutorando em Comunicação na UNISINOS)

27-04-2016 - Fábio

No dia 13 de abril, foi lançada na plataforma de financiamento coletivo Catarse, uma campanha para viabilizar a reedição daquele que é, provavelmente, o melhor livro brasileiro sobre historietas argentinas: Bienvenido: um passeio pelos quadrinhos argentinos (2010). O livro é um levantamento detalhado, escrito em linguagem acessível, que cobre boa parte da produção dos quadrinhos argentinos, de seus primórdios, nos anos 1920, até seis anos atrás. Paulo Ramos, o autor, é jornalista e professor do Curso de Letras da USP. Já escreveu outras obras sobre o gênero quadrinístico, como A Leitura dos Quadrinhos (2009) e Muito Além dos Quadrinhos: Análises e Reflexões sobre a Nona Arte (2009). Paulo também mantém, desde 2008, um importante blog sobre o gênero, o ‘Blog dos Quadrinhos’.

Bienvenido faz parte de uma linhagem de estudos sobre a historieta, da qual também fazem parte Historia de La Historieta Argentina (1980), de Carlos Trillo e Guillermo Saccomanno, El Domicilio de La Aventura (1993), de Juan Sasturain e El Oficio de Las Viñetas (2010), de Laura Vázquez. Além de um panorama histórico, também encontramos nesses estudos análises e reflexões ligadas ao mercado editorial e aos meios de difusão do gênero na Argentina. Nessas obras, como em qualquer outra em que se pretenda contar a história da historieta argentina, é imprescindível falar de Dante Quinterno (1909 – 2003).

Quinterno é o primeiro artista gráfico e empresário ‘multimídia’ da história dos quadrinhos argentinos a alcançar um público massivo, criar um ‘sindicato’ para preservar os direitos autorais sobre os personagens e a fundar a própria editora. O mais famoso de seus personagens aparece pela primeira vez em 1928, na tira ‘Aventuras de Don Gil Contento’, publicada no jornal diário Crítica. Com um nome que é um verdadeiro trava-línguas (Curugua-Curuguaguigua), o índio da Patagônia que Don Gil, o protagonista da tira, recebe de presente (!) de um tio, logo passaria a se chamar Patoruzú.

Criando situações cômicas com a inadequação de Patoruzú ao mundo urbano, Quinterno explora, de maneira talvez não muito consciente, o tensionamento entre o selvagem e o civilizado, e apresenta ao leitor, de forma lúdica, o choque cultural que sempre acompanha a mudança dos costumes e das práticas sociais.

Em 1931, Patoruzú torna-se protagonista de uma tira no jornal La Razón, e, em 1935, Quinterno e seu personagem migram para o jornal El Mundo, onde o desenhista publicava uma outra tira, ‘Isidoro’. Isidoro é uma espécie de playboy portenho, interesseiro e de caráter duvidoso, que se encontraria com Patoruzú nesse mesmo ano. A história desse encontro é interessante. Patoruzú, cansado de ficar no hotel onde vive, sai a passeio e encontra Isidoro, manager de um lutador cigano, Juanyio. Em um ringue montado por Isidoro, o lutador desafia qualquer um a enfrenta-lo. O robusto Patoruzú se interessa pelo desafio. Derruba Juanyio com apenas um soco. O cigano levanta e tenta a desforra, apanhando ainda mais. Percebendo o potencial não só do índio, mas do espetáculo, Isidoro corre para a entrada do ringue e começa a cobrar para que a plateia assista a luta. Nas tiras seguintes, com sete a oito quadrinhos diários, Isidoro torna-se ‘padrinho’ de Patoruzú ao descobrir que ele é herdeiro da fortuna de um antigo chefe do povo tehuelche[1].

As características de Patoruzú e de Isidoro, como a de outros personagens que se juntariam a eles nas décadas seguintes[2], demonstram uma opção pelo nacional que marcaria grande parte da produção de quadrinhos na Argentina. O enorme sucesso de Patoruzú junto ao público comprova o interesse dos leitores por personagens com os quais, em alguma medida, se identificam. Também demonstra o tino comercial e a capacidade de Quinterno em perceber a necessidade de explorar outras mídias. Em 1938, por exemplo, um anúncio veiculado na revista Patoruzú apresentava aos leitores uma linha de pulseiras e de bonecos, em três tamanhos, inspirados nos personagens. O desenhista tinha Walt Disney como referência, chegando a viajar para os Estados Unidos a fim de aprender técnicas de animação. Um de seus grandes desejos era levar Patoruzú  às telas de cinema. De acordo com Paulo Ramos, Quinterno “Tentou repetir, sem sucesso, o feito das produções dos Estúdios Disney. O sonho se limitou ao desenho Upa em Apuros, exibido na Argentina em 1942” (RAMOS, 2010, p.32).

As andanças de Patoruzú, Isidoro, Upa e Patoruzito dividiam as páginas de Patoruzú e de Patoruzito – outro dos vários nomes da principal publicação de Quinterno –, com aventureiros estrangeiros como Flash Gordon, e nacionais, como Cabo Savino e Hernán, o corsário, com os quais nos encontraremos na semana que vem. Até lá.

Continuará

Confira a primeira parte do relato.

[1] Tehuelche é uma espécie de nome genérico atribuído aos primeiros habitantes da região da Patagônia argentina. Os tehuelche – também conhecidos como patagones – eram temidos pelos primeiros colonizadores, que os descrevem como gigantes, por sua estatura e grande força física. Apesar do tamanho avantajado, os patagones não tinham resistência a certas doenças trazidas pelos colonizadores, sendo dizimados principalmente pela varíola e pelo sarampo.

[2] Em 1936, Quinterno cria a revista Andanzas Del Indio Patoruzú, que mudaria de nome algumas vezes, até se estabelecer como Patoruzito. A publicação seguiria chegando aos kioscos até 1984.

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