Trabalho e comunicação no mundo digitalizado

Foto: Brayan Martins/ Paralaxe Fotografia

A digitalização vem ocupando todos os setores na sociedade. No mundo do trabalho, novas estruturas e modos de operação estão sendo criados. A plataformização, a publicidade programada e os algoritmos são apenas algumas facetas das novas reformulações no campo. Para debater sobre comunicação e trabalho em diálogo com a vertente Mattelart, Roseli Figaro, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), José Miguel Pereira, professor associado da Pontificia Universidad Javeriana (PUJB), e Daniel Valencia, também professor da PUJB, realizaram um debate online promovido pelo Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación para América Latina (Ciespal).  

Através do evento foi possível perceber a importância de Armand e Michèle Mattelart para pensar a comunicação como eixo dirigente e vanguardista. Foram trazidas provocações em relação ao mundo digitalizado: afinal, como a comunicação pode ajudar a pensar os dramas do mundo do trabalho na contemporaneidade? Ao mesmo tempo em que muitas pessoas podem trabalhar em casa de forma remota, outras se tornam a linha de frente em trabalhos presenciais. Os problemas ocorrem dos dois lados. Enquanto os que trabalham presencialmente enfrentam a doença do covid-19 de frente, os que estão em casa enfrentam novos modos de estar no mundo do trabalho. 

Roseli desenvolveu, no ano passado, uma pesquisa que revela como trabalham os comunicadores durante a pandemia. Como as questões ergonômicas, de iluminação e de espaço de trabalho afetam esses profissionais? Como fazem para separar a vida pessoal da produção? Estamos em um momento de profundas transformações nas empresas e na comunicação, onde a maior parte das relações acontece mediada por plataformas. Segundo Roseli, as ferramentas estão colonizando as nossas vidas, permeando as nossas ações. E, ao mesmo tempo, existem oligopólios internacionais que dominam a comunicação em todo o mundo.

José Miguel destacou as contribuições, ainda nos anos 1960, da corrente Mattelart para o momento que vivemos hoje. Segundo ele, é necessário que deixemos de lado as perspectivas funcionalistas, estruturalistas, de análise de conteúdo e do discurso. Os meios de comunicação devem atuar como um processo social mais amplo, estruturado e histórico. Nesse sentido, é essencial que haja um movimento de observar os processos sociais e as práticas de comunicação. Os profissionais precisam atuar em busca de um olhar transdisciplinar, que entenda os sistemas econômicos, organizacionais e jurídicos. É preciso sair do campo da comunicação para ver de uma maneira mais ampla – uma maneira processual, histórica, transdisciplinar.

A questão dos trabalhadores sem trabalho também foi abordada no evento. Daniel comentou como atualmente existem mais empresas, mais potencial de trabalho, mais ferramentas mas, ao mesmo tempo, menos direitos e menos lugares de trabalho. Existe um movimento de deterioração das condições de trabalho que fica evidente no Brasil. A uberização é um fenômeno crescente em todo o mundo. Nela, as condições de trabalho se tornam ainda mais precárias, pois os trabalhadores não possuem vínculos empregatícios e dependem da oferta e demanda para receber o seu sustento. Além disso, precisam ter jornadas de mais de 12h de trabalho para ter salários ínfimos. Essas mudanças mediadas pela tecnologia e pela plataformização são algumas das poucas opções para as 13,4 milhões de pessoas desempregadas em 2021, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Daniel também contou sobre a diferença de salários entre jornalistas e diretores na área da comunicação. Enquanto os diretores têm salários exorbitantes, os jornalistas ganham até 3 salários mínimos na Colômbia. A precarização laboral fica ainda mais evidente quando o professor conta que a maioria dos jornalistas não ganham salário, mas recebem por pautas publicitárias. Sem seguridade e direitos trabalhistas, esses profissionais tornam-se reféns dos oligopólios, que utilizam a lógica da dominação com a hegemonia do relato, conforme nos diz a corrente Mattelart. Atualmente, os jornalistas buscam por seu sustento, não pela informação.

Outro âmbito da precarização do jornalismo é a má formação acadêmica. Preocupadas com questões de produção de conteúdo, as universidades pecam ao não oferecer uma formação humanística, contextual, histórica e geopolítica. De que serve escrever quando não se tem o que escrever? Estudantes saem das universidades, muitas vezes, sem a capacidade de realizar um exercício crítico e reflexivo sobre a realidade. As condições precárias de trabalho facilitam o processo de desinformação e fake news. No Brasil, há um movimento sistematizado do governo e das empresas privadas de causar confusão, medo e ódio no povo. Assim, fica mais fácil pautar as mídias e confundir a opinião pública. 

Exemplo disso é um caso ocorrido na Colômbia. Há mais de 60 anos o país vive em conflito armado que é defendido e midiatizado pelos meios de comunicação. Os poucos jornais autônomos são próximos do poder e não questionam nada. O que se tem é um tipo de jornalista ligado às fontes oficiais e que reforça o senso comum. É essencial pensar em como a comunicação não é só transmissão de informação. As políticas de comunicação e seu ecossistema contribuem para nossos processos democráticos, ao pluralismo cultural e político. Cabe à ciência da comunicação pensar em processos que transcendam o sistema empresarial. 

Novas profissões

Ao mesmo tempo em que há poucos postos de trabalho, existem novas profissões sendo criadas. É o caso da Cambridge Analytics, por exemplo. Essa empresa privada atua com agentes políticos e econômicos e faz intervenções nos processos eleitorais – abrindo, assim, um novo mercado de trabalho. E todo esse movimento ocorre com lógicas que têm como eixo estruturante as tecnologias da comunicação. É o caso também das big techs  que começam a fazer movimentos perto do jornalismo, como Facebook e Google, que tem projetos para a área. Segundo Roseli, esses movimentos acabam com as empresas locais.

Para que haja uma comunicação democrática, cidadã e crítico-reflexiva, faz-se urgente a regulação dos meios de comunicação. Os oligopólios nacionais e internacionais são responsáveis pela disseminação de narrativas que não são confrontadas e debatidas. Na Colômbia, tornou-se conhecido o caso dos falsos positivos, em que cerca de 6.402 civis foram mortos pelas Forças Armadas do país, acusados de fazerem parte das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Onde estavam os jornalistas do país para confrontar essa mentira? Eles não tinham condições de cobrir a guerra, pois cobriam dos escritórios das fontes oficiais, segundo Daniel. 

Existe uma limitação editorial em que os jornalistas de hoje já se acostumaram a cobrir as notícias através do Facebook, Twitter e das fontes oficiais. Como, então, fazer um retrato real da pobreza e da violência? É necessário ter a diversidade de fontes e de narrativas. Mas, para além disso, é essencial que haja a construção de mídias contra hegemônicas. Mídias que atuem em prol da educação, da sociabilização e da disseminação do conhecimento, não de objetivos econômicos. Já passou da hora da América Latina deixar de se destacar por suas elites extrativistas e corruptas que controlam a comunicação. Todo poder ao povo.

Texto livre escrito por Vitória Pimentel.

Foto: Brayan Martins/ Paralaxe Fotografia

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