Viva Améfrica: reflexões a partir de Lélia Gonzalez

Texto livre de Vitória Pimentel, estudante de jornalismo da Unisinos e bolsista de iniciação científica PIBIC – CNPq.

Foto: Cézar Loureiro / Revista Cult (Domínio público)


Em “A categoria político-cultural da amefricanidade”, Lélia Gonzalez nos fala sobre a influência africana na língua e na cultura brasileira. Professora, ativista e militante negra, desde a década de 1970 a autora discutia em seus textos as relações provenientes da colonialidade e do racismo. Segundo Gonzalez (1988, p. 129), o “colonialismo europeu, nos termos com que hoje o definimos, configurou-se a partir da segunda metade do século XIX” e o racismo se constitui como uma “ciência” da superioridade eurocristã (GONZALEZ, 1988b). Ela diferencia o racismo na Europa e na América Latina: nos países europeus, a estratégia foi a segregação dos negros e brancos; já na América Latina foi o racismo por denegação.

Na segregação explícita, a identidade racial é facilmente reconhecida. As crianças crescem sabendo quem são e com quem se identificam. Esse processo permite que sejam desenvolvidas novas formas e percepções no interior da sociedade onde vivem (GONZALEZ, 1988b). O processo de criar redes de enfrentamento ao racismo também se torna mais fácil, pois os grupos se reconhecem e podem criar laços. No Brasil, país miscigenado e que em 2021 ainda propaga a democracia racial, esse processo é muito mais complicado. 

Criado pelo sociólogo Gilberto Freyre na obra “Casa Grande e Senzala”, de 1933, o termo “democracia racial” nega a existência do racismo e denota a crença de que não há discriminação racial, pois a sociedade vivem em estado de plena igualdade entre as pessoas. As discussões, nesse caso, podem se iniciar desde o tom de pele, com pessoas que não se reconhecem como negros e nem brancos, até o funcionamento do sistema de cotas. O racismo estrutural, a política de  branqueamento da população, o apagamento das culturas africanas e a marginalização das religiões afro-brasileiras, por exemplo, são elementos que dificultam a aproximação de pessoas que sofrem com o mesmo problema: o racismo. 

Em 2020, entrou em discussão no Twitter a distribuição de cotas para indígenas. Uma conta anônima pesquisou todos os candidatos que receberam cotas em universidades federais do país. Estudantes indígenas foram “denunciados” pois não se encaixavam fenotípicamente ao “modelo” de indígena propagado no imaginário ocidental e nos meios de comunicação. Para os denunciantes, os indígenas deveriam ter pele parda, cabelo preto escorrido e não ter acesso à internet – afinal, onde já se viu índio de iPhone?  

Racismo como ferramenta de alienação

Gonzalez também fala sobre a perpetuação do imperialismo estadunidense. As repressões se dão em todos os campos, mas destaca-se aqui a questão da linguagem. Os Estados Unidos, ao se auto denominarem “americanos”, apagam as identidades de milhares de americanos que moram em Chile, Brasil, Peru, Venezuela e diversos outros países que fazem parte da América. O mesmo acontece com os termos “afroamericano” e “africanoamericano”, que reafirmam essa posição imperialista  (GONZALEZ, 1988b, p. 78):

Ao adotarem a autodesignação de afro/africanoamericanos, nossos irmãos dos Estados Unidos também caracterizam a denegação de toda essa rica experiência vivida no Novo Mundo e da consequente criação da Améfrica. Além disso, existe o fato concreto dos nossos irmãos de África não os considerarem como verdadeiros africanos. O esquecimento ativo de uma história pontuada pelo sofrimento, pela humilhação, pela exploração, pelo etnocídio, aponta para uma perda de identidade própria, logo reafirmada alhures (o que é compreensível, em face das pressões raciais no próprio país). Só que não se pode deixar de levar em conta a heróica resistência e a criatividade na luta contra a escravização, o extermínio, a exploração, a opressão e a humilhação. Justamente porque, enquanto descendentes de africanos, a herança africana sempre foi a grande fonte revificadora de nossas forças.

O Brasil é um país formado por epistemicídios e apagamentos das culturas nativas. Ao trazer a expressão “amefricanidade”, Gonzalez oferece uma nova concepção do que é ser americano – ou melhor, amefricano. A amefricanidade é uma expressão que designa a todos nós, americanos (América do Sul, Central, Norte e Insular). Esse termo ultrapassa fronteiras territoriais, linguísticas e ideológicas  (GONZALEZ, 1988b). Amefricano designa a descendência de todos os habitantes deste continente: dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro e também dos povos nativos anteriores à colonização europeia. É uma forma de combater o colonialismo empregado na linguagem. A própria Lélia Gonzalez utiliza expressões informais da língua para resistir e denunciar exclusões da linguagem acadêmica. 

A academia, por ser ocupada principalmente por homens brancos, héteros e cis, demonstra já um espaço de exclusão racial. Nas universidades federais, apenas 15,8% dos professores são negros, conforme dados de 2019 do Censo do Ensino Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), divulgados pelo Sindicato dos Professores das Universidades Federais de Santa Catarina. Essa realidade seria menos assustadora se a maioria da população não fosse negra, como na realidade o é: 54% dos brasileiros são negros ou pardos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Apesar do mito da democracia racial, Gonzalez reafirma que a ideia de que “todos são iguais” é uma formalidade, pois o racismo latino-americano mantém negros e indígenas em segmentos subordinados das classes exploradas. Os meios de comunicação são usados para perpetuar e reproduzir os valores ocidentais e europeus.

Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca demonstra sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer (de ‘limpar o sangue’, como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura. (GONZALEZ, 1988a apud GONZALEZ, 1988b,  p. 73)

Os pensamentos e reflexões de Lélia Gonzalez são essenciais para repensar a linguagem. Como visto, ela pode ser um instrumento de dominação e, portanto, deve ser questionada por pesquisadores da área e pela sociedade como um todo. Cabe a nós, comunicadores, desfazermos discursos e repensarmos conceitos a partir da compreensão que Gonzalez nos permite ter sobre a perpetuação do racismo através da língua.

Referências

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82.

PRUDENTE, Eunice. Dados do IBGE mostram que 54% da população brasileira é negra. Jornal da USP: São Paulo. 2020. Disponível em: <https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-e-negra/> Acesso em 17 de julho de 2021.

Professores negros são 15,8% dos docentes de universidades federais. Apufsc Sindical. Santa Catarina. 2020. Disponível em: <https://www.apufsc.org.br/2020/11/20/professores-negros-sao-158-dos-docentes-de-universidades-federais-2/> Acesso em 16 de agosto de 2021. 

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