Texto livre por Mariana Necchi.
Para dar origem aos primeiros rabiscos que posteriormente se solidificaram em forma de “La teta asustada”, a cineasta e roteirista peruana Claudia Llosa fez de seus ouvidos um meio testemunhal para as tradicionais lendas folclóricas dos Andes e com seus passos percorreu uma rota sangrenta para os conflitos políticos do Peru entre as décadas de 1980 e 1990. A estreia de Llosa no cinema já havia se dado com o aclamado “Madeinusa”, lançado em 2005 — este que também se relaciona intimamente com as perspectivas políticas, culturais, místicas e religiosas do Peru —, e imperativamente anuncia que o cinema latino-americano continua transcendendo seu tempo.
O livro da antropóloga estadunidense Kimberly Theidon, “Entre prójimos: el conflicto armado interno y la politica de la reconciliación en el Perú”, de 2004, foi um guia para Llosa adentrar ainda mais nas memórias nebulosas de seu país: No estudo empírico de Theidon, foram entrevistados moradores de sete comunidades de Ayacucho, região que foi o palco principal para as atrocidades da luta armada entre o governo militarista peruano e o Partido Comunista del Perú (PCP), com o objetivo de reconhecer e documentar o impacto da guerra e os traumas psicológicos pós-barbárie.
A partir dos relatos, pode-se considerar que os habitantes percebem e interpretam todos os males como algo externo, definidos como “agarram a pessoa” e “entram nela” — como é o caso das camponesas indígenas de origem quíchua que acreditam na transmissão da dor e do sofrimento da mãe para o bebê através do leite. Isso é definido como “mancharisqa nuñu”, que, em adaptação livre, ficou conhecida popularmente como a “doença da teta assustada”. O termo surgiu porque, durante os quase 20 anos de guerra, centenas de mulheres foram estupradas coletiva e individualmente; e muitos dos nascimentos da localidade são produtos dessas violências sexuais e existenciais — e, por isso, manifesta-se a decisão de não amamentar suas filhas como um sistema de evitar que a herança simbólica do terror vivido seja passada para as gerações seguintes.
Lançado em 2009, “La teta asustada” se apropria de um realismo mágico, atmosférico e sensorial para impulsionar a concepção de coming-of-age em um mundo onde mulheres parecem destinadas a viver forçadamente com medos e traumas. Para a primeira sequência do longa-metragem, é apresentada uma tela preta somente com a sonorização de mãe e filha cantando sobre seus tormentos mais profundos e dilaceradores: de maneira natural e instintiva, é na música que elas encontram um campo para se comunicar livremente. As duas musicalizam o estupro, genocídio, violência e a imposta performance do gênero feminino em tempos de guerra. Logo depois, vemos o rosto da mãe em seu penoso leito de morte e a filha atentamente a observando. A despedida é feita e um pacto silencioso é selado.
A matriarca falecida foi uma “teta assustada” por ter sido violentada sexualmente quando estava grávida; e tal acontecimento é tratado como um fardo familiar intrínseco ao feminino — como algo para não somente se ter no sangue, mas, principalmente, nas batatas. Na composição narrativa que beira o fantasmagórico, as batatas adotam o simbolismo de resistência. As mulheres recebem a orientação ancestral de colocar batatas em suas vaginas para evitar a invasão brutal de seus territórios subjetivos e de seus corpos físicos que, no filme, se materializa em estrutura de estrupro metafórico — mas o problema dessa estratégia desesperada de sobrevivência é que batatas continuarão crescendo se receberem o mínimo de recursos de vida e umidade que o próprio corpo feminino é capaz de fornecer. As batatas são uma defesa incontrolável que, em um breve piscar de olhos, podem rapidamente tomarem uma forma tão mortal quanto a própria invasão. Aqui, acredito que convém contextualizar que a batata é originária do Peru e é vista como um símbolo de prosperidade — que desde a civilização Inca, foi um dos principais alimentos das populações andinas, porém, ao ser levada forçadamente para a Europa, não só foi incorporada à sua alimentação diária, mas, também, apropriada pela cultura colonizadora que, ao mesmo tempo, promoveu um apagamento da memória de sua origem; tanto que muitos a denominam de “batata inglesa”
O filme conta a história da singela Fausta, uma jovem suburbana que passa seus dias cantando canções tradicionais folclóricas na língua quíchua. Agora órfã, ela se vê obrigada a enfrentar seus medos literalmente enraizados para, finalmente, conhecer o mundo que existe além das paredes de sua casa. Com a missão de juntar dinheiro para custear o enterro da mãe na sua aldeia natal, ela vai trabalhar como doméstica na mansão de uma musicista milionária que enfrenta um bloqueio criativo — aqui em uma clara alusão ao colonialismo latino-americano que ainda se mantém vivo e presente na realidade social do nosso continente, principalmente nas inter-relações problemáticas entre as ditas ideias de “patroa” e “empregada”; e a narrativa faz questão de elucidar isso visceralmente.
A partir de tal configuração, a trama vai se desenrolando circularmente através dos dilemas internos e externos da personagem principal: Fausta, com seu medo do mundo, se aventura em um jornada fantástica pela busca da sua própria existência. O luto pela mãe, o casamento espalhafatoso da prima, o tio que faz o papel da figura paterna, o jardineiro que demonstra interesse romântico, a patroa que a objetifica em uma espécie de escravidão moderna, o estranhamento de uma indígena perante a cultura branca e burguesa servem de artifícios para concretizar objetivamente o teor crítico e político permeado em toda a concepção do roteiro. Em uma cena, temos o sofrimento de Fausta como a reverberação do sofrimento de um povo inteiro. Em outra cena, temos a festividade das tradições nativas do Peru; com demonstrações de idiomas originários, músicas e danças locais — e é entre isso que o filme habita. Tudo isso, ainda, com a batata introduzida em sua vagina; que, agora, começa germinar internamente causando dores e inflamações uterinas.
Para o cenário, as ambientações secas e arenosas de Manchay, uma área periférica do distrito de Pachacamac, na capital Lima, que os povos indígenas originários se refugiaram para escapar da guerra. Para dar vida à heroína protagonista, é totalmente nítido o flerte com as dimensões da literatura trágica — ainda que, por vezes, tenha um certo humor bizarro em diálogos e cenas pitorescas envolvendo os personagens. A magnitude e expansividade disso se dá diretamente pela performance soberana da atriz Magaly Solier: de beleza etérea e olhares expressivos, é nos momentos de cantoria livre que ela faz Fausta brilhar.
— ¡No tengo miedo porque quiero!
— Sola la muerte es obligatoria, el resto es porque queremos.
— ¿Y cuando te matan y violan? Eso es obligatorio?
“La teta asustada” é uma desconstrução muitíssimo bem sucedida do gênero coming-of-age. A trajetória de Fausta é a mistura agridoce entre a dor e a esperança, o caminho entre o medo e a liberdade, a âncora da ancestralidade e a ascensão de um futuro desassombrado.
América Latina é uma expressão conjugada no feminino. América Latina é resistência. América Latina é Fausta.
FONTES:
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LLOSA. Claudia. La teta asustada. [Filme-DVD]. Direção e Roteiro: Claudia Llosa. Produção: Claudia Llosa. 1 DVD, 97 min. , color. Legendado. Peru-Espanha, 2009.
MORENO, Patrícia F. América em transe: cinema e revolução na América Latina (1965-1972). Universidade Federal Fluminense. 2011. https://www.historia.uff.br/stricto/td/1343.pdf
NOGUEIRA, Manoela. Representações Sociais no Cinema Latino Americano. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul – Palhoça – SC. 2014. https://www.portalintercom.org.br/anais/sul2014/resumos/R40-0385-1.pdf
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THEIDON, Kimberly. Entre prójimos: el conflicto armado interno y la politica de la reconciliación en el Perú. 2004. Lima: Instituto de Estudios Peruanos.
VASSALI, Maurício; FAVRETTO, Analu; PINTO, Ivonete. O Novo Terceiro Cinema de A Teta Assustada: Violências e Aculturações. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2018. https://portalintercom.org.br/anais/nacional2018/resumos/R13-2339-1.pdf