Seja um bom ancestral hoje

Por Anápuáka Muniz Tupinambá Hã Hã Hãe e Raquel Gomes Carneiro

“Cansado, mas tenho que fazer. Faço por necessidade de todos os dias com ou sem presidentes, ou imperadores e todos os seus invasores e invasões de nossas nações, amando fazer trilhas. Mas um dia, isso acabará em mim. Mas “tu” ou “tus” farão outras estradas e rodovias trocando rumos em outras rodoviárias vividas. Vamos seguir em frente, pois não temos líderes! Temos pessoas que confiamos até a página 2 de um folhetim qualquer. Amo o cansaço que me dói, porque me mostra vivo a mim e morrendo aos outros, vendo a fantasia filosófica do tal índio. Bláh! Futurismo! Sejamos bons ancestrais hoje!

Por isso, amo o que faço mesmo quando não sou respeitado por você, vocês ou amado por uns e outros, ao fazer: Etnomídia Indígena, na Rádio Yandê, no Yby Festival, nas artes contemporâneas, nas políticas públicas e economias indígenas. Ao apresentar hubs indígenas aos governos, vendo minha mais valia e, às vezes, dou de graça a única coisa que tenho para pagar as minhas mamitex ou serviços essenciais à vida. Ser sacaneado sempre por indígenas e não-indígenas!

 Quer meu talento ou minha alma ancestral? De graça, hoje, só o amor por mim mesmo! No mais, são trocas! Quem não trocar ou “escambar”, pague aqui, fisicamente, ou prepare-se para a cobrança em outros planos de existências!

Por fim, respeite cada Nação Indígena que garante a você, viver hoje sobre terras cheias de espíritos e cultivadas por um sangue ancestral que você ignora por sua estupidez racista estrutural! A ignorância que lhe habita é alimentada diariamente pelo simples fato de eu querer ser quem eu sou!

Sejamos bons ancestrais hoje!

E, se possível, amanhã também”!

O desabafo de Anápuáka Muniz Tupinambá Hã Hã Hãe neste 19 de abril, o tal inventado Dia do Índio como ele mesmo diz, nos convoca a pensar: que tipo de ancestrais somos quanto ao reconhecimento de nossa ancestralidade brasileira e latino-americana? Ainda que cada ser humano tenha seu modo de viver e manifestar a sua existência nesse mundo, o chamado Nhandereko para o povo Guarani, a sabedoria desta etnia também ressalta que em essência, temos as mesmas forças e energias que nos sustentam pelos poderes do Sol e da Lua. Entre as passagens forçadas e os trajetos imprevisíveis que podem surgir e mudar os rumos, como uma impensável pandemia, há “a preciosa noção do caminho familiar, com marcos onde a significação de vida se concentra” (2003; p.114), como tão bem nos lembra Eclea Bosi. É sobre essa trilha universal no qual aquilo que nos é mais caro, ações, reações, sentires, fazeres, ganha por fim um sentido.

Ailton Krenak conta que há muito vem sendo ridicularizado por abraçar e conversar com árvores, com os rios, por contemplar as montanhas, como sendo as raízes da experiência de vida do povo Krenak uma espécie de alienação. E nós? Mais do nunca, como invejamos o fluir do ar sem máscaras em meio à natureza agora!

O Dia do “Índio” nos alerta, enquanto aprendiz-pesquisadores, para perseguir de forma humilde, compromissada e cidadã, uma razão aberta que promova o diálogo e, especialmente, a escuta sensível do complexo, daquilo que se diz irracionalizável. O pensamento mitológico evolui, se desloca e se transforma e é o concreto vivido se infiltrando nas abstrações, as tornando vivas, nas palavras de Morin (1986). Não se trata de reintrodução de deuses ou espíritos, mas de espiritualizar e divinizar aquilo que vem de dentro. O conhecimento começa como nos alerta Eclea Bosi (2003), pela resistência à opinião, principalmente àquela que vem endossada pelo poder. Quando se ergue contra ela, o pensamento que diverge é tido como desordem. Por isso, foi sempre tão difícil aceitar, pela voz hegemônica, que o mundo é tecido por uma inexplicável polifonia de etnias, costumes, culturas, tradições e crenças.

Há um outro lugar para habitar além dessa terra dura? O mundo dos sonhos, responderia Ailton Krenak (2019). Mas, o sonho como experiência transcendente na qual o casulo do humano implode se abrindo para outras visões da vida não limitada. Uma existência que se enriquece nas comunicações e práticas populares que auxiliam no reconhecimento de nosso próprio ser.

REFERÊNCIAS

BOSI, Eclea. Entre a opinião e o estereótipo. In:__O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. P.113-126.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1ª ed. – São Paulo; Companhia das Letras, 2019.

MORIN, Edgar. O método, vol.3. O conhecimento do conhecimento. Lisboa: Europa – América, 1986, p. 120-230.

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