Kali Uchis e as perspectivas de identidades culturais latino-americanas

Por: Mariana Necchi, com orientação de Renata Cardoso.

Depois de ter sido temporariamente expulsa de casa aos 17 anos, foi no banco de trás de um carro que, além de morar, Karly-Marina Loaiza começou a fazer canções. Um teclado, um microfone de baixa qualidade e um gravador portátil serviram como mediadores para a então adolescente soltar as angústias musicalizadas em sua potente voz.

Filha de emigrantes de Pereira, cidade que fica na região cafeeira da Colômbia, foi no estado da Virgínia, nos Estados Unidos, que a família Loaiza se estabeleceu para fugir dos conflitos da zona rural de onde viviam — ainda que seguidamente retornassem ao país de origem. Karly cresceu em um ambiente onde as raízes latino-americanas se mantiveram presentes e fortes, mesmo com a nova vida em território estadunidense. Em uma entrevista para a revista Rolling Stone, ela comenta que o seu espanhol é usado para conversar com familiares e amigos próximos, e percebe o quanto é comum a inviabilização da língua no país: “Conheço muitos filhos de latinos que não foram alfabetizados com o espanhol. É muito mais difícil a conexão com as suas origens, e eles sentem que um pouco da sua latinidade foi apagada; o que é lamentável”.

Alguns anos após as gravações das primeiras músicas, agora já adotando o nome artístico de Kali Uchis — “Kali” uma variação do seu original e “Uchis” remetendo ao apelido dado por seu pai na infância —, ela lança o EP “Por Vida”, em 2015. Apesar de ser cantado totalmente em inglês, é no clipe de “Ridin Round” que a herança e a energia latino-americana da cantora é exaltada: gravado em sua terra natal e com participação de sua família, a rua suburbana e a casa onde morou são utilizadas como cenário para desenvolver a narrativa visual. “É sobre aceitar o seu passado e tudo o que você é. Eu quis realçar de onde eu venho, minha cultura e pessoas reais”, conta em entrevista para a revista Noisey.

Foi a partir disso que o burburinho positivo ao redor dela começou, mas o que mais chamou atenção foram as parcerias e colaborações com nomes de peso; como Tyler, the Creator, Diplo e Katrynada. O que era apenas um EP sem grandes pretensões, se tornou uma antecipação para o lançamento do primeiro álbum completo.

É hora de se isolar e entrar no mundo particular de Kali.

Sob os holofotes e em meio a expectativa do álbum debut, Uchis se dedicou em explorar sua musicalidade e identidade estética. Em 2017, lançou “Tyrant” com participação da britânica Jorja Smith — na época, também em ascensão — e “Nuestro Planeta”, primeira música cantada inteiramente em espanhol, junto do astro do reggaeton Reykon.

O caminho percorrido por Kali até então, com um EP e singles lançados antes de sua estreia oficial, tornou possível as experimentações musicais e, também, o acúmulo na bagagem de práticas artísticas.

É com o álbum “Isolation”, lançado em 6 abril de 2018, que toda sua trajetória se solidifica. Com 15 canções que passeiam pelos mais variados gêneros — bossa nova, r&b, soul, funk e rap — ela prova não ser somente uma cantora e compositora: com uma porta aberta ao seu mundo particular, ela se mostra e se destaca por ser multifacetada; pois produz as músicas, roteiriza e dirige a grande parte dos clipes e, de maneira minuciosa, também traz colaboradores — BIA, Steve Lacy, Damon Albarn, Kevin Parker e Bootsy Collins em destaque — que elevam ainda mais as texturas sonoras.

A letra de “Your Teeth In My Neck” fala sobre problemáticas sociais e econômicas relacionadas com a exploração de imigrantes latino-americanos. Em entrevista para a revista Pitchfork, ela desabafa: “Imigrantes e tantas pessoas da classe trabalhadora são postas ao trabalho arduamente todos os dias em troca de moedas, centavos e restos para sobreviver; e aí percebemos que a vida foi completamente drenada de nós. Muitas pessoas não percebem o valor do tempo e da energia posta ali, porque as empresas colocam salários muito baixos. Minha família nunca conseguiu tirar férias ou aproveitar o tempo junto, porque todos estavam trabalhando constantemente; apenas para ganhar o suficiente para viver”.

Além de temáticas que abordam subjetivamente sua colombianidade, Kali usa e abusa de estéticas pertencentes da subcultura latino-americana, em especial os estilos chicana e chola, para compor sua identidade visual.

“Isolation”, lançado em 2018.

Isolation” é uma ode para os fins de tarde em tons pastéis e as noites iluminadas em neon, em pleno verão. Aos ouvidos, soa extremamente pop — porém, sem deixar de ser experimental e inventivo à sua própria maneira. Para a mídia especializada, foi aclamado criticamente e se fez presente em listas de melhores álbuns daquele ano.

Sem medo e cantando em espanhol

No final de 2019, o single da música “Solita” é lançado para traçar novos horizontes. Totalmente em espanhol, a canção marca o fim da era “Isolation” para, então, criar a ambientação para o aguardado álbum sucessor.

Dentre os efeitos individuais de crise sanitária e humanitária causada pela pandemia do coronavírus — que já atingiu a infeliz marca de mais de três milhões de mortes ao redor do mundo — também nota-se um impacto no processo criativo dos artistas; incluindo o de Kali. O segundo álbum foi adiado e deu lugar para o EP caseiro gravado em quarentena, “To Feel Alive”, lançado em 24 de abril de 2020. Com 4 faixas e sem tanta inspiração, a recepção da crítica e do público foi morna; talvez por não se tratar exatamente de músicas inéditas, mas sim de antigas que nunca haviam sido lançadas oficialmente. Outro ponto negativo é o de não conseguir manter o alto nível de produção já característico de sua carreira. 

Passados quatro meses, Uchis retoma a sua atenção para  a produção do segundo álbum e disponibiliza o single “Aquí Yo Mando”. Em espanhol e com a participação da rapper Rico Nasty, a música e a letra exalam uma forte energia feminista e uma ressignficação da personificação “girl power”. Na época, a cantora usou o Twitter para rebater as críticas que vinha recebendo de fãs que se mobilizaram pedindo para que voltasse usar o inglês como idioma principal: “Hoje disponibilizei outra música em espanhol, o que eu sei que significa mais um dia de decepção para os meus fãs que falam inglês e não querem tentar ouvir idiomas que não entendem”.

A escolha do espanhol, de fato, virou um embate. Além de alguns fãs, a gravadora britânica EMI também adotou o mesmo posicionamento de desencorajar as músicas no idioma — e, de forma mais ameaçadora, colocou uma cláusula no contrato que somente músicas em inglês seriam validadas pela empresa  —. O acordo com a gravadora havia sido assinado em 2016, com o completo desconhecimento de tal condição por parte dela.

No entanto, Kali estava definitivamente determinada em continuar acentuando suas raízes e cantar em espanhol. Com clara referência ao escritor colombiano Gabriel García Márquez, o segundo álbum recebe o título de “Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios)” e é lançado em 18 de novembro de 2020. Com 13 músicas, o destaque fica pela maturidade artística e pela ainda mais direta influência de ritmos latinos — bolero, reggaeton, flamenco, pop e soul —, assim como também pela alta qualidade de produção.

“Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios)”, lançado em 2020.

O álbum se apropria do resgate cultural para criar as texturas e a imersão sonora. Logo na faixa inaugural, Kali abre o baú de referências e engata uma viagem musical pela América Latina: “La Luna Enamorada”, que foi originalmente gravada pelo grupo cubano Los Zafiros nos anos 60, agora é ressignificada em sua voz; ainda que sem perder a essência. Em homenagem à icônica cantora cubana La Lupe, também foi feita uma releitura da canção “Que Te Pedí” ao maior modelo do soul latino.

O ápice fica com “Telepatía”, que, em poucos meses, se tornou um hit global e colocou o nome de Kali Uchis no topo das paradas musicais mais importantes. O mais curioso é analisar como isso aconteceu: A gravadora não proporcionou os devidos investimentos para o álbum e a divulgação, pelo fato de ser cantado totalmente em espanhol. Porém, eles não contavam com o poder que a arte tem de transcender todas as barreiras impostas.

De maneira inteiramente orgânica, a música começou a marcar presença nas famigeradas “trends” do aplicativo TikTok — através de desafios de dança e maquiagem. A ruptura foi feita, e a popularização em massa aconteceu de forma astronômica: Com um milhão de cópias já vendidas, “Telepatía” também acumula mais de 370 milhões de streams no Spotify; se tornando a segunda música mais tocada no mundo no primeiro semestre de 2021.

E para completar ainda mais o sucesso, a música ganhou um clipe especial. Roteirizado e dirigido pela própria Kali, a cantora retorna a sua cidade natal para um passeio nostálgico e romântico pelas ruas. A paisagem urbana de Pereira se intercala com cenas de estética burlesca, criando uma simbiose enigmática. A primeira cena do clipe, que mostra uma colisão de carros, é inspirada no filme de 1995, “Desperado” (que no Brasil, em tradução livre, recebeu o título de “A Balada do Pistoleiro”), em uma singela homenagem à personagem interpretada pela atriz mexicana Selma Hayek.

Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios)” é um álbum íntimo e pessoal. Se com “Isolation” Kali abriu uma porta para conhecermos o seu mundo particular, agora ela mostra não ter medo de deixar todas as portas abertas. A imersão em sua latinidade, assim como também forças, vulnerabilidades, amor próprio, feminismo, paixões e romances complexos estão por todos os lados; e são bem-vindos para criar o lirismo agridoce presente em todas as faixas. Novamente, o uso de colaborações — PartyNextDoor, Jowell & Randy, Jhay Cortez, Little Dragon em destaque — eleva ainda mais a sonoridade, mas que, dessa vez, não chegam nem perto de ofuscar a cantora. 

Repetindo o sucesso crítico e de público, talvez até mais que o seu álbum antecessor, agora o desafio é outro: Aos 26 anos, Kali Uchis é do mundo. Para os mais pessimistas, uma one-hit-wonder; enquanto para os mais otimistas, uma cantora que tem tudo para chegar no hall de nomes como Selena Quintanilla, Shakira e Thalía.

E isso só o tempo dirá. Daqui, nos manteremos atentos e almejando que o seu nome seja potencializado e alcance horizontes ainda mais distantes.

As perspectivas de latinidades e identidade culturais no mundo pós-moderno e o impacto da cultura pop

Discorrer sobre as ideias de América Latina e identidades latino-americanas é adentrar em uma zona de conceitos amplamente simbólicos: antes da invasão territorial e cultural em nosso continente, já contávamos com povos originários presentes — mas foi a partir da expansão marítima ibérica, marcada intensamente por olhares e ações imperialistas e colonizadoras, que nos constituímos da forma que somos hoje; com as veias abertas e sangrentas pela estética dominadora, fetichista, masculinista, predatória dos invasores etnocidas.

Por efeito consequente, a própria noção de identidade latino-americana guarda uma notável complexidade e não pode ser deslocada da sua origem violenta e traumática. O semiólogo argentino Walter Mignolo discorre em seu livro, “La Idea de Latinoamerica”, de 2005, afirmando que “[…] A ideia de uma América caracterizada como Latina é expressão do domínio colonial sobre as terras do Novo Mundo, em detrimento dos povos nativos ou daqueles trazidos como escravos”.

Se ingressamos para as noções culturais latino-americanas, os conceitos podem ficar ainda mais nuviosos. Os países que compõem geograficamente a América Latina são dotados culturalmente de múltiplos delineamentos — tornando-se, de certa forma, incabível uma abordagem única e sequer definitiva sobre tais indagações.

Apoiando-se nas ideias do teórico e sociólogo Stuart Hall, mais precisamente em seus estudos relacionados às concepções de identidade cultural, chegamos no conceito pós-moderno: “[..] A identidade torna-se uma “celebração móvel”, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeam”. Dito isso, sabemos que os processos de formação de identidade costumam ser estabelecidos a partir de tensionamentos causados pelas relações de poder. Para o sociólogo Manuel Castells, em “O poder da sociedade”, de 1997, há três categorias de identidade: 1) a identidade legitimadora; que é inserida por instituições dominantes na sociedade e tem como objetivo a expansão e racionalização de sua dominação nos atores sociais; 2) a identidade resistente; criada por atores sociais que se encontram em posições ou condições subalternas e estigmatizadas pela lógica de dominação; e 3) identidade de projeto; que é fundamentada pela ação dos atores sociais de se apropriar de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance para construir uma nova identidade — e, principalmente, para que esta seja capaz de redefinir sua posição na sociedade.

Kali Uchis em ensaio para a revista “Latina”, de maio de 2021. Foto: Micaiah Carter.

Kali Uchis pode realmente não ser uma artista musical tão subversiva e inovadora, se comparada com a também colombiana Lido Pimienta, a venezuelana Arca ou a porto-riquenha Princess Nokia (Quem sabe elas não são as próximas a aparecer por aqui?), para citar alguns exemplos — mas, também não podemos negar o impacto em massa que ela está causando culturalmente.

Como já comentado, é notável a apropriação da cantora para o uso dos estilos chicana e chola para compor seu conceito imagético. Se por décadas essa estética foi e é usada por estadunidenses em produções culturais para suprir uma espécie de “fetiche” colonizador em estigmatizar, com Kali isso se alterna — o uso dessa estética, aos meus olhos, é uma forma encontrada por ela para enlaçar a sua própria latinidade e fazer questão de ser identificada como tal. 

As suas performances do dito “feminino” ou “feminilidade”, mediadas por muita sensualidade e sexualidade, também são alternadas — novamente diferentemente de suprir os olhares fetichistas colonizadores de uma concepção do ideal de mulher latina, ela usa isso para posicionar suas visões feministas, empoderadoras e de amor próprio. Em músicas, por trechos como “Si estás conmigo, solo mando yo / Aquí no es cómo y cuándo pides” e “El sentimiento, yo no lo presto / Es que no soy de nadie, no soy dueto”, ou em entrevistas, como para a mídia digital latina We Are Mitú, “Eu sou mulher e sei o que é estar constantemente tentando descobrir como se fortalecer e amar a si mesma em um mundo que está sempre ditando o que você deve ser e o que você deve vestir”.

Em seus clipes, vemos uma Colômbia viva, vibrante com as suas próprias cores e com pessoas reais — também indo ao oposto das típicas representações Hollywoodianas de países latino-americanos, onde são usados filtros amarelos para fazer as nossas localidades passarem uma ideia de ameaça, sujeira e de “primitividade”. A escolha de Kali em retratar regiões suburbanas e periféricas colombianas se dá por sua vivência pessoal, relacionada a um laço de afeto com seu passado.

Inclusive, na internet isso é motivo para “memes”. As localidades retratadas nos clipes e em fotos postadas no Instagram apresentam uma grande semelhança com a região Leste de São Paulo, no Brasil. Uma conta do Twitter brinca com a similaridade dos locais e “cria” um universo alternativo onde Kali é brasileira e mora em Itaquera. O perfil é seguido pela própria cantora, que adora as comparações.

Se aqui no Brasil os fãs de cultura pop se decepcionam com o silêncio ensurdecedor da cantora Anitta para as questões sociais do país, os colombianos não precisam implorar para ouvir palavras politizadas de Kali. Em abril desse ano, a onda de protestos contra o governo e a reforma tributária na Colômbia implodiu — principalmente nas cidades de Bogotá, Medellín e Cali — e já deixou a marca de mais de 50 mortos. Uchis, em uma entrevista para o portal UOL, se pronunciou: “Tem sido um momento difícil. Precisamos apoiar os protestos e espalhar o que está acontecendo. O governo está censurando tudo e fazendo com que os manifestantes passem a ser pintados como terroristas; quando, na verdade, eles estão sendo pacíficos. As pessoas acham que começou pela reforma tributária, mas tem muito mais corrupção no país. A América Latina como um todo vem sofrendo com isso”.

Kali Uchis é o momento. E vem quebrando barreiras com a sua música pop de uma maneira diferenciada e cheia de personalidade para públicos que, até então, não eram atingidos com essa maneira de ser e performar a latinidade.

Texto livre escrito por Mariana Necchi, com orientação de Renata Cardoso.

Fontes:

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