Helânia Thomazine Porto (UNEB)
hthomazine@hotmail.com
Inicio esse texto sobre a II Marcha das Mulheres Indígenas que ocorrerá em Brasília (DF), entre os dias 7 e 11 de setembro de 2021, apoiando-me na publicidade do evento efetivada pela Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (2021), pois essa imagem traduz pensamentos e vozes de mulheres originárias, porquanto os povos indígenas não suportam mais as atrocidades e ataques em seus territórios. Infelizmente, o Estado não se atenta para a importância da participação das 305 nações indígenas, incluindo as mulheres dessas etnias no enfrentamento às crises climáticas e ecológicas, quando se pensa em um projeto de defesa das vidas e do equilíbrio da Mãe-Terra. É urgente a retomada da Ancestralidade indígena, pois só assim será possível pensar um Brasil inclusivo e cidadão, e para sonhar esse novo Brasil é preciso Reflorestar as Mentes. Partindo dessa convocação, piso com meu maracá nesse território, pois a luta das mulheres indígenas vem de longe e é coletiva.
O dia 05 de setembro foi eleito como uma data de reflexão acerca das pautas indígenas, especificamente a questão da resistência no território ancestral, pois essa data faz referência a liderança Bartolina Sisa, brutalmente assassinada no enfrentamento ao sistema colonial, em 05 de setembro de 1782. Sendo, portanto instituída essa data como o Dia Internacional das Mulheres Indígenas, durante o II Encontro de Organizações e Movimentos da América, em Tihuanacu (Bolívia), em 05 de setembro de 1983.
Em aderência a esse sentimento, a primeira marcha organizada por mulheres indígenas em Brasília ocorreu entre os dias 9 e 14 de agosto de 2019, sendo o tema eleito “Território: nosso corpo, nosso espírito”. Em decorrência da crise pandêmica Covid-19, com início em 2020, a marcha em 2020 aconteceu em formato meta presencial. E, em 2021, as mulheres indígenas retomam as mobilizações presenciais, organizando a II Marcha “Mulheres Originárias: Reflorestando mentes para a cura da Terra”, que ocorrerá entre os dias 07 e 11 de setembro. Conforme o tema eleito, busca-se, como na primeira marcha, o fortalecimento da organização das mulheres indígenas das 305 nações, em enfrentamento ao Projeto de Lei 490, de 2007, que coloca a data 05 de outubro de 1989 como um marco final de avaliação dos territórios indígenas.
O Projeto de Lei 490 cria um “marco temporal”, considerando terras indígenas os lugares ocupados por povos originários até o dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Assim, os novos pedidos de regulamentação que não foram avaliados até esse período serão engavetados. Caso a lei em tramitação seja aprovada, o futuro dos povos originários sofrerá interdições; dentre essas, a diminuição das reservas indígenas e as invasões de territórios indígenas que não foram regulamentados.
Em resistência ao projeto de desmonte das políticas territoriais dos povos originários, no dia 27 de agosto de 2021, indígenas de diversas regiões do país deslocaram-se para Brasília, e protestaram na Esplanada dos Ministérios, promovendo a inclusão dessa pauta no primeiro item da agenda do Supremo Tribunal Federal (STF) do dia 01 de setembro de 2021, sendo os trabalhos iniciados novamente prorrogados para o dia 08/09/2021. Considera-se que essa foi a maior mobilização indígena ocorrida desde a constituinte de 1988, conforme se observou no Acampamento #LutaPelaVida, a presença de mais de 6000 mil pessoas de 173 povos em Brasília, lutando contra o Marco Temporal. Além de denunciar esse Projeto de Lei, os indígenas apontam as políticas genocidas do Estado no enfrentamento à crise sanitária, ao agronegócio, à mineração, à contaminação das águas e ao desmatamento. Sendo a pauta principal o PL 490, por esse ser mais um instrumento de negação às existências plurais.
Em continuidade a essas ações, corpos de mulheres originárias rumam para Brasília confirmando que Pindorama (Brasil) é Território Indígena, sinalizando que as mulheres originárias sempre estiveram presentes nas lutas e nas resistências, ainda que não estivessem nas ruas ou nas redes sociais digitais, estavam nas comunidades construindo projetos con-cidadãos, no florestamento dos territórios, das mentes e dos corações.
Nesse sentido a II Marcha Mulheres Originárias: Reflorestando Mentes para a Cura da Terra revela-se como um jeito diferente de organização feminista, por ser estruturada como uma práxis do território, conforme lembra Célia Xacriabá1 (2020)2, o território pensado como um útero, no sentido de gerar vidas, pois os biomas são as portas de entrada e de saída para o mundo. São eles que geram vida e a permanência da vida na terra. Logo, uma epistemologia da cura construída nas/das profundas relações de respeito das pessoas com a “Casa Comum”. Esse evento também almeja denunciar a concepção de Estado que se tem, pois este nega a sua dimensão plurinacionalista, ao homogeneizar as diversidades dos povos originários do Brasil, tanto na representação genérica de indígenas quanto na determinação de um Marco Temporal para a análise de processos diversos, acionados após a promulgação da Carta Magna.
Assim, a ‘cura das mendes’ proposta pelas mulheres originárias se dará pela garantia dos territórios indígenas, pois não há como vivenciar a identidade – ser mulher originária em todas as suas complexidades, fora do território e sem as políticas de proteção ambiental. Portanto, importante se faz, a nível nacional, superar as práticas discriminatórias que afetam os povos indígenas e assegurar a participação das 305 nações nas tomadas de decisões que impactam as vidas de todos/as. Não se deve pensar na ‘cura das mentes’ adotando-se uma economia neoliberal e o agronegócio, pois esses sistemas seguiram e ainda seguem eficientes políticas de anulação e de negação dos direitos de todas as formas de vidas. Nessa miragem a participação coletiva de todas constituem a pedra angular ao enfrentamento da PL 490/ 2007.
A cura do pensamento implica na reconstrução de um mundo para todos os seres vivos, nesse caso, a violência aos povos originários também são práticas de violência a Mãe-Terra. É bom lembrar que mulheres e homens originários não buscam ocupar o lugar dos/as opressores/as, ter poder não significa organização social coletiva por uma perspectiva descolonial; portanto, busca-se reflorestar as mentes por meio de ruptura às lógicas centralizadoras de poder. Propõe-se, então, no lugar da hierarquização, relações de trocas horizontais e de participação coletiva rumo a outros marcos civilizatórios – corpos e vozes originários que se fundamentam nas memórias coletivas, nos estudos, nas participações políticas, nos movimentos sociais e nas organizações internas das próprias comunidades indígenas.
Essa mística também se faz presente nas ações políticas de Telma Taurepang (2019)3, que tem sua história construída junto às lutas pela demarcação e proteção do território, principalmente no combate à violência aos corpos de mulheres indígenas e à discriminação aos povos originários, pela defesa da ocupação de espaços de direito sem disputas ou competições. Suas atuações políticas se intensificaram nos últimos anos, frente às políticas de Estado, pois, com o governo Bolsonaro os conflitos arquitetados por posseiros e mineradores ganharam força nos territórios indígenas, sendo o PL 490 a maior afronta à existência e à proteção da Mãe-natureza. Pois, na atual política de Estado percebe-se o aumento das violências aos indígenas. Do período de 2018 a 2019, segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi, 2021), as invasões aos territórios indígenas cresceram 135%, dobrando a violência contra os aldeados. Portanto, o Marco Temporal coloca em risco de extinção territórios indígenas e povos originários.
Nesse linha do pensamento tem-se Sônia Guajajara (2019)4 que também milita em defesa da biodiversidade, situando as mulheres como guardiãs dos conhecimentos tradicionais, considera que as mulheres sempre foram responsáveis pela sustentabilidade dos territórios, uma vez que as lideranças masculinas estiveram à frente dos enfrentamentos diretos fora do Território Indígena, sendo as mulheres articuladoras das ações nos territórios, realizando micropolíticas coletivas.
Outra pauta exibida por Sônia (2019) é o combate à violência às mulheres, advinda dos processos de invasão e ocupação, considerando que o colonialismo desestruturou as organizações sociais, principalmente as regras internas das organizações sociais das comunidades indígenas. A colonização trouxe a institucionalização da agressão que atinge principalmente as mulheres, entretanto a ativista considera que a luta das mulheres indígenas está casada com a luta do movimento indígena, pois são pautas interligadas e lutas que se somam. Sônia considera ainda que as conquistas das mulheres indígenas estão relacionadas com a participação de todas nos processos políticos, observando que não há a necessidade de disputa de poder entre mulheres e homens, pois a organização social dos povos originários é pela complementariedade, não pela disputa de poder.
Para Sônia Guajajara há de se pensar coletivamente o bem viver que não é o mesmo que viver bem, assim reflorestar o pensamento não é só uma substituição de uma expressão pela outra. Nesse sentido “a cura da terra” seria por uma revolução do pensamento, como da busca ao retorno às origens quando não existia Estado e nem poderes, por outras formas de organização fundamentadas nos diálogos com todos os irmãos indígenas.
Retoma-se a Célia Xacriabá (2020) para se pensar a ocupação coletiva das ruas pelas mulheres originárias, pois ela ao se lembra da I Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília (em 2019) avalia que para o espanto de todos, em meio ao asfalto, nasceu uma flor, uma flor com a cara das indígenas pintadas de urucum, com o jeito de cada mulher indígena. Uma flor que tem também a cara da multidão, singular e plural ao mesmo tempo. Mas é também uma flor de revolta, de indignação, de nojo, sem deixar de ser é uma flor de esperança. Para Célia ser mulher indígena é nascer nessa resistência, sem ter tempo de ter medo, pois vive-se em um contexto de genocídio há mais de cinco séculos, que ainda não terminou. Na leitura de Célia Xacriabá ser mulher indígena é fazer parte da luta, não sendo exatamente uma escolha, pois não se tem como escolher entre ter medo e continuar lutando pela vida; e, tem sido a luta pela vida que tem movido a resistência de ser mulher indígena.
Reflorestando Mentes para a Cura da Terra, na perspectiva de Celia Xacriabá (2020), é o caminho para mudança de pensamento quanto ao ataque aos biomas que atinge os corpos das mulheres indígenas e da humanidade, pois cada bioma é a extensão do corpo da terra, e se ele estiver adoecido, o corpo também adoecerá. Sendo assim, o “reflorestamento da mente” deve ser uma luta coletiva, que parte do chão do território e de dentro de cada um(a).
Apesar do corpos das mulheres indígenas carregarem cicatrizes causadas pelos coloniza_dores, Célia Xacriabá (2020) considera que só se avança na luta antifascista, quando se ecoa e se reuni as mesmas vozes em lutas antirracistas; quando se descoloniza os pensamentos, os corpos, os olhares, o enxergar, o escutar, o falar; quando se descoloniza o sistema e suas formas de opressão. Conclamando para a mudança de pensamento, Celia diz que ainda há tempo de se transformar as mentes e que a Pachamama faz esse chamamento. Portanto, é preciso escutar o clamor dos povos originários, e aquele(a) que não se sentir sensibilizado, não ouvirá esses chamamento, logo, suscetível a morrer não pelos conflitos coloniais, como os indígenas estão, mas a morrer pelo veneno que chega na mesa. Para a cura da terra, o chamamento é agora! Nesse sentido, é preciso recuperar a espiritualidade, rompendo com o racionalismo excludente, pois não se resiste só com o pensamento e com o cérebro, luta-se apoiado(a) no coração e na energia ancestral. Espiritualidade a ser lida não como magia, religiosidade, igreja, mas como ENERGIA ANCESTRAL em sintonia com a Pachamama, Ñanderu, Niamissu, Syratã; sendo assim, “reflorestar mentes” compreende também se conectar para além do que não se pode entender, pois é desse lugar que vem a força e a energia ancestral.
1 Pode-se encontrar também a grafia “Xakriabá” para essa etnia.
2 Entrevista concedida por Célia Xacriabá Por Martina Medina do instituto Yan, em 04/09/2020. Disponível em:<https://yam.com.vc/sabedoria/791662/celia-xakriaba-curando-a-terra-curamos-a-nos-mesmos>.
3 Pensamento de Telma Taurepang retirado de entrevista cedida a Sofia Scart e Nívea Magno / MÍDIA NINJA, em 08/08/2019. Disponível em: <https://cimi.org.br/2019/08/mulheres-em-luta-as-principais-pautas-da-1a-marcha-das-mulheres-indigenas/>.
4 Sônia Guajajara em entrevista cedida a Rafael Ciscati, em 08 agosto 2019.Disponível em:< https://www.fundobrasil.org.br/igualdade-de-genero-sera-pauta-da-1a-marcha-das-mulheres-indigenas-diz-sonia-guajajara>.
Foto capa: retrato de uma mulher do povo indígena Ashaninca (Ashaninka), retirado do banco de imagens Pexels.