Amy Goodman, âncora de Democracy Now!, um noticiário internacional transmitido diariamente em mais de 550 emissoras de rádio e televisão em inglês e em mais de 250 em espanhol, entrevista, nesta semana, John le Carré, ex-espião que condena Tony Blair por ter ido à guerra do Iraque.
O comentário foi traduzido do castelhano e revisado do original em inglês por Bruno Lima Rocha.
Eis o artigo.
John le Carré, o ex-espião britânico que se converteu em autor de novelas de espionagem, dedicou duras palavras a Tony Blair, ex-Primeiro Ministro inglês, membro do Partido Trabalhista. Passados mais de sete anos da invasão do Iraque, o ex-premiê britânico, que agora não ocupa nenhum cargo e fica excursionando pelo mundo promovendo suas memórias políticas, vem enfrentando graves protestos durante as sessões de autógrafo de seu livro.
Quando estive em Londres recentemente, John le Carré me disse: “Não posso entender que Blair tenha uma vida pública e talvez um futuro político ainda. Parece-me que um político qualquer que tenha levado seu país à guerra utilizando pretextos falsos cometeu o maior dos pecados. Acho que uma guerra, na que nos negamos a aceitar o número de pessoas que temos matado, é uma guerra da que deveríamos estar envergonhados. Sempre há que ter cuidado com isso. Não falo como um profeta, eu suponho que simplesmente falo como um cidadão enraivecido. Penso que é verdade que temos causado danos irreparáveis no Oriente Médio e acho que vamos ter que pagar por isso por longo tempo.”
Estávamos sentados em um estúdio de televisão localizado em uma das orlas do Rio Tâmisa, com vista para dois dos antigos locais de trabalho de le Carré: o MI5, (Security Service, o Serviço de Segurança Interior do Reino Unido), voltado para operações dentro do território, e o MI6 (Secret Intelligence Service, SIS, o Serviço Secreto de Inteligência britânico), que opera em nível internacional. Para termos um grau de comparação, seriam equivalentes ao FBI e a CIA dos Estados Unidos. John le Carré é o pseudônimo do inglês David Cornwell, que trabalhou como espião no período do final da década de 1950 até princípios da de 1960. Ele começou a escrever novelas e teve que eleger um apelido, um pseudônimo devido a seu trabalho em espionagem. Tinha sua base na Alemanha quando, em 1961, viu como foi erguido o Muro de Berlim, o que o motivou a escrever sua terceira novela: “O espião que saiu do frio” (The Spy Who came in from the cold,) cuja primeira edição foi em 1963, convertendo-se num best-seller em todo mundo.
O romance foi publicado no mesmo período em que outro autor britânico de novelas de espionagem, Ian Fleming, desfrutava do sucesso da reconhecida série de ficção cujo protagonista é o espião britânico James Bond. Diferente dos extravagantes personagens e a ação sem limites dos livros e filmes de Bond, os personagens das novelas de le Carré são sujeitos desolados, envolvidos em atos de enganos, desonestidades e violência deliberada. Com a atenção do mundo posta no Muro de Berlim e na crise dos mísseis em Cuba, le Carré cativou ao público do mundo inteiro ao mostrar a crua realidade do espião na frente de batalha da Guerra Fria.
Quando a Guerra Fria chegou ao fim, le Carré continuou sua produtiva carreira de escritor, e foi mudando o foco de seus textos. Veio se aproximando cada vez mais a temas como as desigualdades da globalização, o poder corporativo multinacional sem restrições e a freqüente confluência dos interesses das transnacionais com as atividades dos serviços estatais de espionagem.
Talvez uma das mais conhecidas de suas últimas novelas seja “O jardineiro fiel”, que trata de uma companhia farmacêutica que utiliza, sem seu consentimento, a cidadãos do Quênia para realizar perigosas provas de uma droga experimental, cujos testes em pessoas podem ser mortais. John le Carré explica: “As coisas que são feitas em nome dos acionistas são, desde meu ponto de vista, me dão tanto calafrio como as coisas que se fazem, me permitam dizer, em nome de Deus.” Como vários outros de seus livros, “O jardineiro fiel” teve sua versão para o cinema, tornando-se um filme muito popular, protagonizada por Ralph Fiennes e Rachel Weisz, direção do brasileiro Fernando Meirelles e fotografia do uruguaio Cesar Charlone.
John le Carré tem escrito com freqüência a respeito da África: “É onde tenho visto a globalização em funcionamento. É um panorama bastante feio. A imagem da globalização que nos é transmitida é uma fantasia de reunião de diretoria de empresa. Seu verdadeiro significado é a exploração de mão de obra muito barata, e com freqüência também implica em desastre ecológico, a criação de mega cidades e o fim da cultura agrária e tribal.”
Seu último livro (o vigésimo segundo), publicado há pouco mais de uma semana, tem como título “Um traidor como os nossos.” Trata-se de uma ficção sobre um conjunto de banqueiros londrinos e seus protetores no parlamento que conspiram em conjunto com a máfia russa para apunhalar a enfraquecida economia mundial através da lavagem de bilhões de dólares provenientes de atividades criminosas.
Em 2003, antes da invasão a Iraque, le Carré participou das manifestações contra a guerra junto a mais de um milhão de pessoas, segundo a estimativa de público: “A marcha se deteve. Estávamos todos muito juntos e com a mirada posta em Downing Street, endereço onde se localiza a residência do Premiê. Parecia que ninguém ia dizer nada, mas a vontade do povo se fez ouvir em uma espécie de grito selvagem. Tratei de imaginar o que deve ter sido para Blair estar sentado dentro desse edifício e ouvir aquele som. Era como um grito imenso, como esses que surgem de uma partida de futebol ou algo assim, onde em realidade não se verbaliza nada, como se fosse um som animal. Acho que sempre se recordará dele, Blair, como aquele que nos levou à guerra a base de mentiras, que é como muita gente o percebe.”
John le Carré me disse que não comprará o livro de Tony Blair, mas que tem algumas perguntas para lhe fazer: “Você viu alguma vez o que ocorre quando uma granada cai em uma escola? Realmente sabe o que faz quando ordena empregar a estratégia de impacto e intimidação’? Está preparado para se ajoelhar ao lado de um soldado que está morrendo e lhe explicar por que ele foi à guerra do Iraque?”
O autor inglês resumiu o que considera o problema central dos poderes mundiais, especialmente do poder britânico e estadunidense: “As vítimas nunca esquecem. Os vencedores sim. Esquecem muito rápido.” Por isso, aos 80 anos, John Le Carré continua escrevendo, captando o interesse dos leitores em sua busca do que ele chama “a grande verdade.
Fonte: IHU Online