O dinheiro é vermelho. Entrevista com David Harvey-IHU OnLine

9/03/2012

Barba e cabelos grisalhos, magro, voz baixa e jeito tímido formam a figura de pacato senhor inglês do geógrafo David Harvey, cuja aparência esconde um ferrenho crítico do capitalismo, animado por um debate que toma as ruas desde a crise americana de 2008, que ele chama de “mãe de todas as crises”. Considerado um dos autores que oxigenam o pensamento marxista na atualidade, seus cursos sobre “O Capital” estão disponíveis na internet e serão, em breve, publicados no Brasil pela Boitempo, mesma editora de seu trabalho mais recente, “O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo“. O livro é resultado de uma provocação: Harvey foi chamado a explicar o que Marx teria dito sobre a crise. Para responder ao desafio, ele trata o capitalismo como um ser vivo, dependente do fluxo de capital como o corpo humano depende do fluxo sanguíneo. Na originalidade desse pensamento está a percepção de que todas as receitas para a crise econômica propõem a estranha combinação entre transfusão de sangue, de um lado, e sangria, do outro. “A regra do neoliberalismo é a de que, entre salvar a instituição e o bem-estar das pessoas, opta-se por salvar a instituição financeira.”

A entrevista é de Carla Rodrigues e publicada pelo jornal Valor, 09-03-2012.

Para Harvey, o capital só sobrevive se movimentando: entre setores econômicos, como o mercado financeiro e o mercado imobiliário, e geograficamente, entre países e regiões. O diagnóstico serve como um alerta ao Brasil, onde o fluxo de capital estrangeiro, as taxas de crescimento econômico, o vigor do mercado imobiliário, o maciço investimento em infraestrutura e a atração de grandes eventos internacionais, são sinais de crescimento e podem ser prenúncio de uma queda vertiginosa em breve.

Doutor pela Universidade de Cambridge, professor emérito na Universidade da Cidade de Nova York, sua carreira de geógrafo foi se voltando para os problemas econômicos e urbanos a partir dos anos 1980, e hoje é principalmente dedicada aos reflexos sociais e políticos do capitalismo e a seus desdobramentos na vida cotidiana e nos espaços urbanos. Nesta entrevista, Harvey defende o movimento “Ocupem Wall Street“, embora admita sua surpresa com a baixa capacidade de mobilização dos americanos. “Era de se esperar que os seis milhões de pessoas que perderam suas casas fossem fazer fila para se unir aos movimentos sociais e protestar.”

O fato de isso não ter acontecido não desanima Harvey. Pelas três universidades por onde passou nos poucos dias em que esteve no Brasil, arrebatou alunos, professores e pesquisadores reunidos em plateias atentas a um conferencista de 76 anos que tem sido inspiração para jovens estudantes ainda entusiasmados com a ideia de mudar o mundo.

Eis a entrevista.

O senhor compara o capitalismo a um corpo e o fluxo de capital ao fluxo sanguíneo. O capitalismo é um doente terminal e incurável? Ou a doença é o estímulo para a busca da cura?

Comparo o capitalismo a um corpo que pode ficar doente se houver restrições ao fluxo sanguíneo. É importante perceber como o capitalismo depende da continuidade do fluxo de capital e como qualquer interrupção, por qualquer motivo, pode ter custos muito altos. A grande questão é: o capitalismo é um sistema que está ficando esclerosado? Tem recebido muitos bloqueios por todos os lados, atualmente. Parte da análise que faço sobre o capitalismo sugere que há muitos pontos de bloqueio com potencial de oferecer riscos à saúde e à continuidade do sistema. Além disso, há o fato de que esse corpo está crescendo e há uma expansão infinita das artérias do fluxo de capital e do fluxo de mercadorias. A maioria dos economistas não pensa em termos de continuidade e circularidade de fluxo. Tendem a pensar na produção e nos bens de produção, que depois vão para o mundo e são consumidos, como um processo linear, e não um fluxo circular.

Como esses bloqueios acontecem e como interferem no funcionamento do sistema?

Existem dois tipos de bloqueios. Primeiro, os econômicos. Há problemas sérios para manter a taxa de crescimento em 3%. O único lugar onde não há restrição é na criação de dinheiro. O Federal Reserve [banco central americano] pode criar quanto dinheiro quiser, a hora que quiser. Marx fala sobre a capacidade ilimitada de criar dinheiro. Acabo de me lembrar – já que estou falando para um jornal de finanças – do último capítulo da “Teoria Geral” de Keynes. Ele conta uma história bíblica do vaso da viúva. Há uma criatura com dificuldades e a viúva lhe dá um vaso que se enche de óleo sozinho constantemente, sem ninguém precisar fazer nada. É uma fonte infinita de energia, uma fonte eterna. Keynes faz um paralelo entre essa história e o capitalismo: o dinheiro é o vaso da viúva. Pode ser perigoso acreditar nisso. Voltando à analogia do sangue: há duas maneiras de olhar para esse corpo politicamente. Podemos usar a antiga técnica de sangria. Quando há excesso, é feita a extração de sangue do sistema. Então, percebe-se que não há sangue suficiente. Outra opção é a transfusão de sangue. Temos apenas duas políticas no momento: uma é a sangria, a outra, a transfusão de sangue. Eu me pergunto quanto tempo um ser humano viveria se, de um lado fizessem a sangria, e do outro a transfusão de sangue.

O senhor acredita que uma solução como a da Islândia [que deixou seus bancos falirem] poderia salvar a Grécia e servir de exemplo para outros países?

Sim, com certeza. Acho que há também outros exemplos que a Grécia poderia seguir, como o da Argentina. A Argentina entrou em crise em 2001. A moeda desvalorizou, houve uma grande crise econômica, mas três ou quatro anos depois estava recuperada. E agora o país está bem. São exemplos em que o paciente, livre dos “médicos” que vão extrair sangue e fazer transfusões, podem correr, se alimentar, e retomar a vida.

O senhor afirma que movimentos imobiliários e megaeventos podem anteceder grandes crises econômicas. Esta poderá ser a razão para o próximo alvo da crise ser o Brasil? Até que ponto pode ser um risco para o país ser atualmente o destino de grandes fluxos de capital?

Não há uma relação automática entre “booms” imobiliários especulativos e colapsos posteriores. Tudo depende da força do resto da economia. O mesmo pode ser dito de países que têm fortes fluxos de capital. Alguns países estão bem posicionados para convertê-los em um grande benefício para si (por exemplo, a China nos anos 1990), enquanto outros podem ser vitimados por eles (por exemplo, Indonésia e Argentina na década de 1990). É por isso que é importante olhar para o processo de desenvolvimento econômico como um todo, ao invés de isolar apenas um fator, embora esse fator possa ser um determinante muito poderoso.

Por mais paradoxal que seja, o fato de a crítica ao capitalismo não promover mudanças pode ser mais uma demonstração da força do capital?

O poder do capital é um poder de classes, hoje altamente concentrado. Poucas famílias controlam grande parte da economia global. Vimos um enorme aumento na desigualdade social nos últimos 30 anos. A classe capitalista controla a mídia, a política, e agora controla o judiciário, de forma que o judiciário ajuda a classe capitalista a controlar a mídia, como vimos recentemente nos Estados Unidos. Os efeitos disso são catastróficos para a democracia. Vimos a derrubada dos governos democráticos e eleitos na Grécia e na Itália, com a nomeação de governos tecnocratas, que deveriam ser neutros e, no entanto, estão lá para cumprir a vontade do grande capital. Portanto, o grande capital tem o controle de tudo.

Tudo ainda se resumiria a uma luta de classes?

Pode-se dizer que há dominação de uma classe. Gosto de uma citação de Warren Buffett, quando perguntaram a ele se existia luta de classes. Ele respondeu: “Claro que existe. A minha classe, a classe rica, promove a luta, e nós estamos vencendo”. Uma das coisas que achei muito importantes no movimento “Ocupem Wall Street” foi que mudou os termos do diálogo. A desigualdade social se tornou um assunto importante. Sempre deveria ter sido considerado importante, mas foi afogado por temas como dívidas e austeridade. O controle que existe nos principais instrumentos de poder, como o judiciário, a política, a mídia, precisa acabar. Uma das formas talvez seja promover movimentos de rua como o “Ocupem Wall Street“. É o primeiro passo diante de um problema muito grande. Considero que o movimento afirmou o que pretendia, mas ainda existe a questão: poderá se transformar em algo maior e mais geral? Caso se transforme em um movimento maior, poderá haver novas discussões. O fato de a ocupação ter sido encerrada pela força policial foi provavelmente algo positivo. Por duas razões. Expôs os objetivos da força policial e quem está por trás dela. A outra é que os manifestantes não sabiam mais o que fazer. Por terem sido expulsos, puderam recuar e discutir os próximos passos.

O movimento ambientalista pode contribuir para a percepção de que outro mundo é possível? De todo modo, não é ingenuidade demais pensar que podemos retroceder em níveis de consumo e conforto?

É difícil generalizar, porque há movimentos ambientalistas em diversos lugares. Existem grupos ingênuos, que acreditam que podemos voltar a viver da terra. Mas se considerarmos, por exemplo, a campanha “Climate Justice“, que reúne cientistas preocupados com as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade, começam a haver possibilidades políticas diferentes. Embora a retórica sobre a mãe natureza me aborreça um pouco, acho que isso apresenta uma possibilidade progressiva. E há o capitalismo verde, que é uma grande bobagem. Há pessoas sérias que acreditam que a forma capitalista de fazer as coisas é um bom caminho a seguir. Existe uma parte da classe capitalista que considera necessário fazer alguma coisa em relação a questões ambientais. E existe outra ala que não quer fazer absolutamente nada. Portanto, há uma divisão, e a questão está aberta a debates.

No livro “A Condição Pós-Moderna”, o senhor associa o capitalismo a volatilidade, insegurança, flexibilização e compressão espaço-tempo. Nenhuma dessas características do capital se modificou. Ao contrário, a mão de obra tem sido cada vez mais exposta a todo tipo de insegurança, o que enfraqueceu todo movimento organizado de trabalhadores. Qual seria, então, o motor de uma mudança?

O livro foi escrito no estágio inicial do que eu chamaria hoje de contra-revolução neoliberal, que começou com Reagan, Pinochet, e o resto. Já existia antes, mas se tornou hegemônica nos anos 1980. Essa crise não mudou as regras do jogo neoliberal. Na verdade, de certa forma a crise derrubou as máscaras, revelando as soluções neoliberais. Uma das soluções criada nos anos 1970 e 80 é a regra do neoliberalismo: caso uma instituição passe por dificuldades financeiras, entre salvar a instituição e o bem-estar das pessoas, opta-se por salvar a instituição financeira. Nada disso mudou. Na verdade, só se aprofundou e se tornou mais nu e cru. A crise me surpreendeu com a falta de resposta política. Certamente, houve respostas localizadas, mas fiquei surpreso, por exemplo, ao ver que todas aquelas pessoas que perderam suas casas nos Estados Unidos não protestaram. Existem movimentos, mas dificilmente se tornaram protestos em massa. Era de se esperar que os seis milhões de pessoas que perderam suas casas fossem fazer fila para se unir aos movimentos sociais e protestar. Isso me diz algo sobre o aspecto psicológico do projeto neoliberal. Margaret Thatcher disse que não estava preocupada em mudar a economia, mas em mudar a mentalidade das pessoas. Há pesquisas nos Estados Unidos que indicam que as pessoas que perderam suas casas não culpam o sistema, elas culpam a si próprias.

Em “A Invenção do Capital”, o senhor retoma o clássico conceito de Marx de exército industrial de reserva, observando que a entrada das mulheres no mercado de trabalho ajudou na expansão capitalista. Isso quer dizer que nós, mulheres, deveríamos ter ficado em casa?

Não, de forma alguma, e por várias razões. Uma delas é que o movimento revolucionário tem que incluir um princípio igualitário, no qual homens e mulheres são iguais. Se a mulher quiser trabalhar, ela pode e deve, e se não quiser, não deve. Se o homem não quiser, também. Como Marx diz, ironicamente, o capitalismo trata de liberdade. A liberdade em um duplo sentido: você é livre para contratar quem você quiser, ou você é livre para trabalhar com o que quiser no mercado de trabalho, mas você também é “livre” de todas as possibilidades alternativas. Você é “livre”, mas não tem outra opção a não ser entrar no mercado de trabalho. Quando isso acontece, o que infelizmente muitas vezes se dá é a submissão à dominação patriarcal. A libertação das mulheres é essencial como base para se construir um movimento político alternativo.

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